quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

AOS MEUS FILHOS...





Meus filhos venho falar a vocês como alguém que abandonasse a noite de Tirésias, no carro

fulgurante de Apolo, subindo aos cumes dourados e perfumados do Hélicon. Tudo é

harmonia e beleza na companhia dos numes e dos gênios, mas o pensamento de um cego,

em reabrindo os olhos nas rutilâncias da luz, é para os que ficaram, lá longe dentro da noite

onde apenas a esperança é uma estrela de luz doce e triste.

Não venho da minha casa subterrânea de São João Batista [O espírito se refere ao cemitério

de São João], como os mortos que os larápios, às vezes, fazem regressar aos tormentos da

Terra, por mal dos seus pecados. Na derradeira morada do meu corpo ficaram os meus

olhos enfermos e as minhas disposições orgânicas.

Cá estou como se houvesse sorvido um néctar de juventude no banquete dos deuses.

Entretanto, meus filhos, levanta-se entre nós um rochedo de mistério e de silêncio.

Eu sou eu. Fui o pai de vocês e vocês foram meus filhos. Agora somos irmãos.
 Nada há de mais belo do que a lei de solidariedade fraterna, delineada pelo Criador na sua glória

inacessível.  
A morte não suprimiu a minha afetividade e a ainda possuo o meu coração de homem para o qual vocês são as melhores criaturas desse mundo.

Dizem que Orfeu, quando tangia as cordas de sua lira, sensibilizava as feras que agrupavam

enternecidas para escutá-lo. As árvores vinham de longe, transportadas na sua harmonia.
 Os rios sustavam o curso nas suas correntes impetuosas, quedando-se para ouvi-lo. Havia deslumbramento na paisagem musicalizada. 
A morte, meus filhos, cantou para mim, tocando o seu alaúde. Todas as minhas convicções deixaram os seus lugares primitivos para sentir a grandeza do seu canto.

Não posso transmitir esse mistério maravilhoso através dos métodos imperfeitos de que disponho. E, se pudesse, existe agora entre nós o fantasma da dúvida.

Convidado pelo Senhor, eu também estive no banquete da vida. Não nos palácios da popularidade ou da juventude efêmera, mas no átrio pobre e triste do sofrimento onde se

conservam temporariamente os mendigos da sua casa. Minha primeira dor foi a minha primeira luz. E quando os infortúnios formaram uma teia imensa de amarguras para o meu destino, senti-me na posse do celeiro de claridades da sabedoria.  
Minhas dores eram minha prosperidade. Porém qual o cortesão de Dionísio, vi a dúvida como a espada afiadíssima

balouçando-se sobre a minha cabeça. 
Aí na Terra, entre a crença e a descrença, está sempre ela, a espada de Dâmocles. Isso é uma fatalidade.

Venho até vocês cheio de amorosa ternura e se não posso me individualizar, apresentando .me como o pai carinhoso, não podem vocês garantir a impossibilidade da minhasobrevivência.
A dúvida entre nós é como a noite. O amor, entretanto, luariza estas sombras.

Um morto, como eu, não pode esperar a certeza ou a negação dos vivos que receberem a sua mensagem para a qual há de prevalecer o argumento dubitativo.
 E nem pode exigir outra coisa quem no mundo não procederia de outra forma.

Sinto hoje, mais que nunca, a necessidade de me impessoalizar, de ser novamente o filho ignorado de dona Anica, a boa e santa velhinha, que continua sendo para mim a mais santa das mães. 
Tenho necessidade de me esquecer de mim mesmo. Todavia, antes que se cumpra este meu desejo, volto para falar a vocês paternalmente como no tempo em que destruía o fosfato do cérebro a fim de adquirir combustível para o combustível para o estômago.

-Meus filhos!... Meus filhos!... Estou vivendo... Não me vêem?... Mas olhem, olhem o meu coração como ainda está batendo por vocês!...

Aqui, meus filhos, não me perguntaram se eu havia descido gloriosamente as escadas do Petit Trianon; não fui inquirido a respeito dos meus triunfos literários e não me solicitaram informes sobre o meu fardão acadêmico. Em compensação, fui argüido acerca das causas dos humildes e dos infortunados pelos quais me bati.

Vivam pois com prudência na superfície desse mundo de futilidades e de glórias vãs.

Num dos mais delicados poemas de Wilde, as Órcades lamentara a morte de Narciso junto de sua fonte predileta, transformada numa taça de lágrimas.

-Não nos admira – suspiram elas – que tanto tenhas chorado!... Era tão lindo!...

-Era belo Narciso? – perguntou o lago.

-Quem melhor do que tu poderás sabê-lo, se nos desprezavas a todas para estender-se nas relvas da tua margem, baixando os olhos para contemplar, no diamante da tua onda, a sua formosura?...

A fonte respondeu:

-Eu adorava Narciso porque, quando me procurava com os olhos, eu via, no espelho das suas pupilas, o reflexo da minha própria beleza.

Em sua generalidade, meus filhos, os homens, quando não são Narciso, enamorados de sua própria formosura, são as fontes de Narciso.

Não venho exortar a vocês como sacerdote; conheço de sobra às fraquezas humanas.

Vivam, porém a vida do trabalho e da saúde, longe da vaidade corruptora. E, na religião da consciência retilínea, não se esqueçam de rezar.

Eu, que era um homem tão perverso e tão triste, estou aprendendo de novo a minha prece,como fazia na infância, ao pé de minha mãe, na Parnaíba.

-Venham, meus filhos!... Ajoelhemos de mãos postas... Não vêem que cheguei de tão longe?
 Fui mais feliz que o Rico e o Lázaro da parábola, que não puderam voltar...

Ajoelhemos no templo do Espírito; inclinem vocês a fronte sobre o meu coração.
 Cabem todos nos meus braços? Cabem, sim...

Vamos rezar com o pensamento em Deus, com a alma no infinito. Pai nosso... que estais no céu... santificado seja o vosso nome...

 08 de Abril de 1935, espírito do grande Humberto de Campos

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