Meus filhos venho
falar a vocês como alguém que abandonasse a noite de Tirésias, no carro
fulgurante de Apolo,
subindo aos cumes dourados e perfumados do Hélicon. Tudo é
harmonia e beleza na
companhia dos numes e dos gênios, mas o pensamento de um cego,
em reabrindo os olhos
nas rutilâncias da luz, é para os que ficaram, lá longe dentro da noite
onde apenas a
esperança é uma estrela de luz doce e triste.
Não venho da minha
casa subterrânea de São João Batista [O espírito se refere ao cemitério
de São João], como os
mortos que os larápios, às vezes, fazem regressar aos tormentos da
Terra, por mal dos
seus pecados. Na derradeira morada do meu corpo ficaram os meus
olhos enfermos e as
minhas disposições orgânicas.
Cá estou como se
houvesse sorvido um néctar de juventude no banquete dos deuses.
Entretanto, meus
filhos, levanta-se entre nós um rochedo de mistério e de silêncio.
Eu sou eu. Fui o pai
de vocês e vocês foram meus filhos. Agora somos irmãos.
Nada há de mais belo do que a lei de solidariedade fraterna, delineada pelo Criador na sua glória
Nada há de mais belo do que a lei de solidariedade fraterna, delineada pelo Criador na sua glória
inacessível.
A morte não suprimiu a minha afetividade e a ainda possuo o meu coração de homem para o qual vocês são as melhores criaturas desse mundo.
A morte não suprimiu a minha afetividade e a ainda possuo o meu coração de homem para o qual vocês são as melhores criaturas desse mundo.
Dizem que Orfeu,
quando tangia as cordas de sua lira, sensibilizava as feras que agrupavam
enternecidas para
escutá-lo. As árvores vinham de longe, transportadas na sua harmonia.
Os rios sustavam o curso nas suas correntes impetuosas, quedando-se para ouvi-lo. Havia deslumbramento na paisagem musicalizada.
A morte, meus filhos, cantou para mim, tocando o seu alaúde. Todas as minhas convicções deixaram os seus lugares primitivos para sentir a grandeza do seu canto.
Os rios sustavam o curso nas suas correntes impetuosas, quedando-se para ouvi-lo. Havia deslumbramento na paisagem musicalizada.
A morte, meus filhos, cantou para mim, tocando o seu alaúde. Todas as minhas convicções deixaram os seus lugares primitivos para sentir a grandeza do seu canto.
Não posso transmitir
esse mistério maravilhoso através dos métodos imperfeitos de que disponho. E, se
pudesse, existe agora entre nós o fantasma da dúvida.
Convidado pelo
Senhor, eu também estive no banquete da vida. Não nos palácios da popularidade ou da
juventude efêmera, mas no átrio pobre e triste do sofrimento onde se
conservam
temporariamente os mendigos da sua casa. Minha primeira dor foi a minha primeira luz. E
quando os infortúnios formaram uma teia imensa de amarguras para o meu destino, senti-me na
posse do celeiro de claridades da sabedoria.
Minhas dores eram minha prosperidade. Porém qual o cortesão de Dionísio, vi a dúvida como a espada afiadíssima
Minhas dores eram minha prosperidade. Porém qual o cortesão de Dionísio, vi a dúvida como a espada afiadíssima
balouçando-se sobre a
minha cabeça.
Aí na Terra, entre a crença e a descrença, está sempre ela, a espada de Dâmocles. Isso é uma fatalidade.
Aí na Terra, entre a crença e a descrença, está sempre ela, a espada de Dâmocles. Isso é uma fatalidade.
Venho até vocês cheio
de amorosa ternura e se não posso me individualizar, apresentando .me como o pai carinhoso,
não podem vocês garantir a impossibilidade da minhasobrevivência.
A dúvida entre nós é como a noite. O amor, entretanto, luariza estas sombras.
A dúvida entre nós é como a noite. O amor, entretanto, luariza estas sombras.
Um morto, como eu,
não pode esperar a certeza ou a negação dos vivos que receberem a sua mensagem para a
qual há de prevalecer o argumento dubitativo.
E nem pode exigir outra coisa quem no mundo
não procederia de outra forma.
Sinto hoje, mais que
nunca, a necessidade de me impessoalizar, de ser novamente o filho ignorado de dona
Anica, a boa e santa velhinha, que continua sendo para mim a mais santa das mães.
Tenho
necessidade de me esquecer de mim mesmo. Todavia, antes que se cumpra este meu
desejo, volto para falar a vocês paternalmente como no tempo em que destruía o fosfato do
cérebro a fim de adquirir combustível para o combustível para o estômago.
-Meus filhos!... Meus
filhos!... Estou vivendo... Não me vêem?... Mas olhem, olhem o meu coração como ainda
está batendo por vocês!...
Aqui, meus filhos,
não me perguntaram se eu havia descido gloriosamente as escadas do Petit Trianon; não
fui inquirido a respeito dos meus triunfos literários e não me solicitaram informes sobre o meu
fardão acadêmico. Em compensação, fui argüido acerca das causas dos humildes e dos
infortunados pelos quais me bati.
Vivam pois com
prudência na superfície desse mundo de futilidades e de glórias vãs.
Num dos mais delicados
poemas de Wilde, as Órcades lamentara a morte de Narciso junto de sua fonte
predileta, transformada numa taça de lágrimas.
-Não nos admira –
suspiram elas – que tanto tenhas chorado!... Era tão lindo!...
-Era belo Narciso? –
perguntou o lago.
-Quem melhor do que
tu poderás sabê-lo, se nos desprezavas a todas para estender-se nas relvas da tua margem,
baixando os olhos para contemplar, no diamante da tua onda, a sua formosura?...
A fonte respondeu:
-Eu adorava Narciso
porque, quando me procurava com os olhos, eu via, no espelho das suas pupilas, o
reflexo da minha própria beleza.
Em sua generalidade,
meus filhos, os homens, quando não são Narciso, enamorados de sua própria formosura,
são as fontes de Narciso.
Não venho exortar a
vocês como sacerdote; conheço de sobra às fraquezas humanas.
Vivam, porém a vida
do trabalho e da saúde, longe da vaidade corruptora. E, na religião da consciência
retilínea, não se esqueçam de rezar.
Eu, que era um homem
tão perverso e tão triste, estou aprendendo de novo a minha prece,como fazia na
infância, ao pé de minha mãe, na Parnaíba.
-Venham, meus
filhos!... Ajoelhemos de mãos postas... Não vêem que cheguei de tão longe?
Fui mais
feliz que o Rico e o Lázaro da parábola, que não puderam voltar...
Ajoelhemos no templo
do Espírito; inclinem vocês a fronte sobre o meu coração.
Cabem todos nos meus
braços? Cabem, sim...
Vamos rezar com o
pensamento em Deus, com a alma no infinito. Pai nosso... que estais no céu... santificado seja o
vosso nome...
08 de Abril de 1935, espírito do grande Humberto de Campos
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