quarta-feira, 27 de março de 2013

HARRY HALLER TINHA RAZÃO ..


Uma palavra de Haller deu-me a chave dessa compreensão. Disse-me ele, certa vez, quando falávamos a propósito das chamadas crueldades da Idade Média:
Tais horrores na verdade não existiram. Um homem da Idade Média condenaria totalmente o nosso estilo de vida atual como algo muito mais cruel, terrível e bárbaro. Cada época, cada cultura, cada costume e tradição têm o seu próprio estilo, têm sua delicadeza e sua severidade,suas belezas e crueldades, aceitam certos sofrimentos como naturais, sofrem pacientemente certas desgraças.
O verdadeiro sofrimento, o verdadeiro inferno da vida humana reside ali onde se chocam duas culturas ou duas religiões. Um homem da antiguidade, que tivesse de viver na Idade Média, haveria de sentir-se tão afogado quanto um selvagem se sentiria em nossa civilização.
Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda salvação e inocência ficam perdidos para ela.
Naturalmente isso não atinge a todos da mesma maneira. Uma natureza como a de Nietzsche teve de sofrer a miséria da época atual há mais de uma geração antes da nossa; tudo quanto teve de suportar sozinho e incompreendido, é o mesmo de que hoje padecem milhares de seres humanos.

Não entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas quais milhares de outros tanto anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes — aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.


Do imortal Hermann Hesse, passagem do livro O Lobo da Estepe

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