Helena não tem culpa
Dias atrás, uma
amiga, alta executiva paulista, radicada no Rio, me mandou um e-mail com a cópia
de uma resenha sobre um livro (fruto de pesquisa de campo) de um
antropólogo,
Napoleon Chagnon, que estudou os índios ianomâmis no Brasil e na Venezuela por muitos anos.
Napoleon Chagnon, que estudou os índios ianomâmis no Brasil e na Venezuela por muitos anos.
Suas conclusões não
são aquelas que a comunidade acadêmica, ideologicamente orientada na sua quase
totalidade, costuma gostar.
Quem sabe, este
"desgosto ideológico dos pares" (gente ávida por destruir oponentes teóricos)
tenha sido responsável pelos desdobramentos negativos que o antropólogo teve em
sua vida profissional por conta desta pesquisa.
O livro ("Noble
Savages"), que logo comprei, deveria ser lido nas escolas. Um tratado contra a
tradição marxista, não só em antropologia, mas em tudo mais. Mas o que
especificamente tem esse livro contra esta tradição?
Engana-se quem pensa
que a tradição marxista comece com Marx, ela começa com Rousseau e seu bom
selvagem. O princípio é que o homem é bom e a sociedade é que o perverte. A
perversão do bom selvagem pelo "Das Kapital" é apenas uma decorrência do
principio do Rousseau, só que para Marx não partimos do bom selvagem, mas sim
chegaremos a ele quando superarmos esta sociedade má.
Uma ideia assim (que
somos bons e a sociedade nos corrompe, e aqui você pode colocar no lugar de
"sociedade" a família, o patriarcado, a igreja, o capital, os EUA, o patrão, seu
pai autoritário) faz almas fracas gozarem de prazer. Porque o que ela diz é que,
ao final, não sou responsável por nada que faço. Não fosse pela "sociedade", eu
seria um homem bom.
Ao contrário do que
parece, essa tradição pegou porque alimenta algo de muito banal: que somos
homens bons em nossa natureza essencial. Esta ideia alimenta nossa vaidade e não
foi por outro motivo que Burke, filósofo britânico do século 18, chamava
Rousseau de "filósofo da vaidade".
Nossa origem é o bom
selvagem? É por isso que australianos que não têm o que fazer se pintam de
aborígenes e gritam por aí? Quanta bobagem! Quanto lixo escrito com tinta cara!
Também concordo que
devemos olhar para o "passado" para entendermos como somos hoje. A diferença é
que minha ideia de "estado natural do homem" é diferente da de Rousseau, o
filósofo da vaidade. Partilho da ideia que para nos entendermos devemos olhar
para a pré-história de fato, e não a mítica, como a do Rousseau.
Este mito alimenta
uma outra bobagem: a ideia de que toda diversidade cultural é linda. "Viva a
diferença!", dizem os festivos por aí.
A "humanidade", na
sua capacidade frágil de não ser bicho malvado, foi tirada das pedras, à custa
de muito sangue. Sempre bebemos o sangue dos outros no café da manhã.
E aí voltamos ao
livro. A conclusão de Chagnon é que os ianomâmis, parentes nossos que vivem
muito perto do que seria o neolítico, tribos que permaneceram bastante "puras"
enquanto outras já haviam sido "contaminadas pela maldade do homem branco"
(risadas?), sempre se mataram por uma razão nada complexa: "mulher, mulher,
mulher".
Inclusive, quem
tinha mais mulher, tinha mais descendentes.
Qualquer
evolucionista gargalharia diante de tamanha obviedade ocultada pelas
interpretações ideológicas pueris da falsa história do bom selvagem.
Os ianomâmis também
têm suas Helenas de Troia. Entre eles, quem matava mais tinha mais mulher. Entre
nós, quem é mais "adaptado" tem mais mulher.Traições no MSN, FACE, etc.. Tudo bem camuflado, claro!
Não se trata de
culpar as mulheres porque são filhas de Eva. Responsabilizar a mulher pelos
males do mundo é coisa de homem brocha que, por não conseguir penetrá-la,
recorre à falsa culpa feminina para aplacar sua desgraça.
Reconhecer que os
ianomâmis se matam em troca de mulheres (ou se matavam enquanto eram "puros" ou
"bons selvagens") não é uma prova contra as mulheres. É uma prova contra
Rousseau e sua tradição do bom selvagem.
Eu, pessoalmente,
acho até uma boa causa. Quero dizer, nos matarmos por mulheres. Neste caso, o
troféu é bem concreto e todo mundo sabe de seu "valor de uso".
Isto é, não
precisamos de provas metafísicas para reconhecer o valor de uma mulher.
(Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo,
escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como
comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários
títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na
versão impressa de
"Ilustrada".)
Nenhum comentário:
Postar um comentário