quarta-feira, 26 de setembro de 2012

CAMPONÊS METAFÓRICO



É apresentado como o maior filósofo alemão desde Habermas e veio a Serralves dizer que o Mundo ainda agora começou. Peter Sloterdijk, professor na Universidade de Karlsruhe, na Alemanha, é um optimista trágico. Diz que ainda ninguém sabe o que é a vida, que o ser humano desapareceu, mas que vai correr tudo bem desde que a humanidade consiga resolver o problema da energia.


Pergunta - Na comunicação que veio apresentar a Serralves defende a ideia de que o mundo ainda agora começou. Isto por oposição à ideia recorrente (e quase todas as eras parecem defender), de que se chegou ao fim da história e de que o mundo está por um fio. Porquê?

Peter Sloterdijk  – Nós não somos capazes de estabelecer um critério válido para determinar se o mundo é novo ou velho. E na introdução da minha conferência tentei mostrar que temos, desde há aproximadamente 3 mil anos,  traços e documentos de uma auto-reflexão cultural que expressa uma sensação de que o mundo está a chegar ao fim. Não só a acabar, mas num processo de crescente degradação que chegou a um momento critico. No Ocidente temos este mito extraordinário sobre as idade do mundo. A idade do ouro entrou em decadência; a idade da prata também; a idade do bronze, igual. E até a idade do ferro, em que ainda nos encontramos, é apenas um falso passo, na direcção da perversão. A partir de uma, duas, quatro fases de perversão começámos a sentir que o estamos num mundo que não se adequa ao nosso equipamento antropológico original, que foi desenhado para outro tipo de vida. Desta auto-interpretação da vida humana resultam muitos discursos da decadência e muitos discursos auto-críticos. São discursos terapêuticos, auto-análise. É a ideia de separação do momento inicial, do início da existência. O homem é um fazedor de distâncias, fazedores de instrumentos. Há uma distancia entre nós e o ambiente. Nós criamos essas distâncias.

Pergunta – É a ideia de que a natureza também nos criou a nós tal como somo, e estes edifícios também por interposta pessoa. Nós também fazemos parte do plano da natureza?

Peter Sloterdijk  – Sim, mas não me parece que a natureza tenha algum plano para os seres humanos. Há uma história natural da contra-naturalidade, é com esse paradoxo que temos que lidar. Não há nenhuma unidade perdida com a natureza, nada que se possa reconquistar. O que se passa é que a tecnologia é apenas o prolongamento lógico da técnica. Essa rebelião contra a natureza ainda está em curso. A tecnologia é a perfeita transposição da metafísica para um nível prático. Metafísica enquanto lógica e simbólica revolução contra a ideia arcaica de que o homem é parte da natureza. O que temos que tratar é saber se há inteligência suficiente na terra para evoluir criticamente e ir eliminando os falsos conceitos, como o de uma sociedade baseada no consumo. As energias fósseis, por exemplo, será que este assunto tem condições de ser recolocado, resolvido por um sistema global de gestão. Se isso acontecer, então temos a prova de que há inteligência suficiente na terra para inverter e corrigir os sentidos errados da evolução. Então, tudo será possível. Caso contrário, a evolução tenderá para a auto-destruição. Mas não de nada de fracasso nisso, seria a prova de que nos conseguíamos destruir a nós e à natureza ao mesmo tempo, de que a natureza não consegue resolver as coisas sem nós. Seria também uma espécie de triunfo da espécie.

Pergunta – O pensamento contemporâneo, da biotecnologia à filosofia da natureza, parece ter um problema urgente para resolver, que o mundo exige: a resposta à pergunta “o que é a vida?”...

 Peter Sloterdijk  – é uma pergunta muito simples, mas muito misteriosa. Ninguém compreendeu ainda o que é a vida. A vida é o foco de todos mal-entendidos criados sobre qual é de facto a nossa situação. Uma pergunta igualmente misteriosa é: “Será que alguma vez entendemos o que significa andar no mundo, à solta. O único homem que ousou dizer o que é a essência da vida foi Nietzsche, o que esteve mais perto, disse que a vida não é o contrário da morte. Porque a vida é apenas uma forma muito rara e intrincada forma de morte.

Pergunta – Se a morte não é o oposto da vida, é o oposto do nascimeno?

Peter Sloterdijk  – Não, o nascimento é um episódio, uma fatalidade biológica relacionada com o facto de a dado ponto na evolução o corpo feminino foi transformado no ninho para o ovo. Répteis, insectos, pássaros e sáurios usaram-no como ninho exterior, como abrigo da próxima geração. Este processo evolucionário da interiorização da ovulação criou a feminilidade e a maternidade, que são a fonte metafórica da ideia de que se pode transferir o abrigo para estruturas técnicas. A função de abrigo do ventre materno transferida para estruturas técnicas, politicas e para ordens simbólicas e políticas. Muito do mistério da vida tem a ver com isto, com facto de estarmos a viver uma metáfora. A realidade humana é sempre metafórica, a criação de ventres maternos em realidades exteriores. Eu referi isso um pouco na conferência, mas de uma forma muito tímida, porque não é coisa que se diga para uma audiência com 50 por cento de homens malucos, estruturalmente incapacitados de perceber do que estamos a falar e com os outros 50 por cento de mulheres que não gostam que se lhes fale dessa maneira porque acham que o corpo delas devia ser usado de outra maneira. (risos) Temos esses dois tipos de inimigos da verdade e em frente a inimigos da verdade é preciso ter-se cuidado. (mais risos)

Pergunta -  Voltamos a Nietzsche e à noção de que o trabalho do filósofo reside na capacidade de distinguir sem opor. Mas apesar do fracasso destas oposições clássicas entre vida e morte, espírito e matéria, sujeito e objecto, é preciso ainda trabalhar com estes conceitos para continuar a pensar. É possível fazer filosofia nova com categorias velhas?                                      

Peter Sloterdijk  – Sim, absolutamente. Uma nova gramática e um novo léxico só podem surgir de um trabalho em curso para repensar o que já foi pensado. A filosofia é uma actividade, não é uma doutrina. E esta actividade tem que continuar em dialogo com todas as mais avançadas formas contemporâneas de sabedoria e conhecimento. No século XX fizemos progressos dramáticos, quebramos barreiras. Aquilo a que temos vindo a chamar natureza desapareceu numa nova estrutura de conhecimento. Aquilo a que chamamos o ser humano desapareceu numa nova estrutura de interpretações. A filosofia está num sítio onde essas mudanças vão sendo recolhidas, juntadas num novo tipo de linguagem. Esta nova linguagem precisa de um novo léxico e provavelmente vai produzir brevemente uma nova lógica de complexidade que acabe com o aborrecimento ancestral da lógica bivalente que  opera este tipo de parelhas de oposições. Ainda que tudo o que Hegel escreveu possa estar errado tem uma intenção muito boa, que é acabar com estes primitivismos binários. Entretanto a filosofia continua à espera de um sítio onde todo os tipos de conhecimento se possam reunir, da lógica plurivalente. Heidegger teve muita razão em salientar que a palavras grega logos contém o verbo legein que significa recolher, não apenas num sentido metafórico, mas no sentido mais prático de colheita, também. Nesta tradição o filósofo é sempre uma espécie de camponês metafórico, um agricultor.

Pergunta – A Filosofia está a trabalhar suficientemente depressa para resolver todas estas novas dúvidas e angústias?

Peter Sloterdijk  – Não acho que a filosofia se depare com um problema de velocidade. A profecia é que tem um problema de velocidade. (risos) Desde que praticamos a divisão social do trabalho que os filósofos fazem um tipo de trabalho e os profetas fazem outro. São diferentes tipos de inteligência que raramente interferem. Mas nunca se sabe se a filosofia não chegará atrasada à próxima grande colheita de conceitos e ideias nem sequer se essa nova ordem de regras chegará a ser instituída. Sempre foi um privilégio da filosofia chegar atrasada. O dia da semana em que o filosofo fala é sempre o domingo. Porque ao domingo até deus descansou. E o filósofo, que é um imitador de deus, trabalha nesse intervalo. A grande perversão do século XIX foi o facto de ter comprometido o filósofo a trabalhar de segunda a sexta, das nove às cinco.

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